top of page
Buscar
  • Foto do escritorCarolina Gomes Domingues

Lei da Alienação Parental: aspectos polêmicos sob as lentes de gênero

Atualizado: 3 de nov. de 2021


É significativa a controvérsia instaurada ao redor da Lei da Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010). De um lado, há quem defenda que ela aprimora a garantia de direitos conferidos às crianças e adolescentes pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo importante marco para a efetivação do princípio da proteção integral no interior das famílias. De outro lado, está quem argumenta que a LAP fragiliza a posição de mulheres e seus filhos(as), na medida em que contribuiria para desacreditar suas narrativas a partir da referência a uma síndrome que carece de verificação científica.


O que diz a lei?

A Lei nº 12.318/2010 define, em seu art. 2º, que podem ser considerados atos de alienação parental quaisquer comportamentos que interfiram na formação psicológica de crianças e adolescentes para causar repúdio contra um dos genitores, ou prejuízo ao estabelecimento e à manutenção de vínculos com este. São indicados, ainda, alguns exemplos de atos alienadores, reproduzidos abaixo:



Art. 2º. Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.


Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:


I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade;

II - dificultar o exercício da autoridade parental;

III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;

IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;

V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;

VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;

VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.


É comum que estes comportamentos se apresentem em contextos de ruptura em relações íntimas de afeto, quando pode ocorrer certo embaralhamento entre os conflitos conjugais e as questões relativas ao exercício da parentalidade. É possível reconhecer indícios de alienação parental quando, por exemplo, a dificuldade de atravessar o luto pelo fim de um namoro, casamento ou união estável resulta na cristalização de comportamentos de vingança ou provocação que impliquem dano emocional aos filhos(as); ou quando o progressivo afastamento entre os genitores resulta na exclusão deliberada de um deles quanto à participação na vida dos filhos(as).



Qual é a controvérsia?

Os defensores da Lei de Alienação Parental argumentam que um de seus principais aspectos positivos reside no fato de a lei dar nome, destaque e contorno a situações de abuso de direito, identificando situações de constrangimento psicológico e emocional contra os(as) filhos(as). Desta forma, a lei contribuiria para delimitar e conter o transbordamento dos conflitos relativos ao fim da conjugalidade. O efeito prático da LAP seria o de resguardar o direito das crianças e adolescentes ao convívio com ambos os genitores – o qual pode ficar ameaçado em meio a contextos de ruptura conjugal. Ao identificar e nomear atos de alienação parental, a LAP contribuiria para resguardar os laços afetivos entre filhos(as) e ambos os genitores.


Cabe destacar que a LAP procura identificar atos de alienação parental, e não o diagnóstico de uma síndrome. Esta distinção é importante pois permite separar o debate clínico e psiquiátrico das discussões acerca do funcionamento da lei. Do ponto de vista médico e clínico, há enorme controvérsia quanto à verificação científica da chamada “síndrome de alienação parental”. No entanto, a LAP não procura identificar a suposta síndrome. Ela opera a partir da reprovação de condutas alienadoras concretas, sem que seja preciso indagar sobre a existência, ou não, de efeitos patológicos sobre o psiquismo dos filhos(as).


Neste esforço, a lei atribui centralidade à realização de perícia biopsicossocial, responsável por fazer ampla avaliação, na qual devem ser analisados os documentos dos autos, o histórico do relacionamento do casal e da separação, a cronologia de incidentes, a personalidade dos envolvidos e a forma como a criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual acusação contra genitor (art. 5º, §1º). Uma vez comprovados os atos de alienação parental, a lei prevê a aplicação de sanções contra o genitor alienador, elencadas em seu art. 6º, incluídas a inversão da guarda e a suspensão da autoridade parental.


De outro lado, as perspectivas feministas sobre o Direito apontam que a referida lei tem sido utilizada sobretudo em contextos de violência doméstica contra mulheres e de abuso sexual contra crianças. A título de exemplo, a publicação Tecendo fios das críticas feministas ao direito no Brasil indica que "para além dos estereótipos discriminatórios de gênero que já existem em nossa cultura e que atravessam o funcionamento da justiça, um novo mito, a Síndrome de Alienação Parental, começou a ser usado nos julgamentos em que se ventilavam estes temas, principalmente naqueles em que se discutia a guarda dos filhos”.


Uma vez que os atos de alienação são, em geral, atribuídos a quem detém mais tempo de convivência com a criança, os argumentos mobilizados costumam ser dirigidos contra as mulheres – que são as maiores responsáveis pelos trabalhos de cuidados, alimentação e educação dos filhos(as). Dados do IBGE apontam que, em 2014, a responsabilidade pela guarda dos filhos após o divórcio era atribuída às mulheres em 85,1% dos casos. Entre 2014 e 2019, houve ligeira redução neste percentual, relacionada à mudança legislativa que passou a definir a guarda compartilhada como regra em casos de divórcio.


Assim, quando a disputa se coloca no sentido de evidenciar eventuais comportamentos alienadores no exercício da maternidade, a narrativa facilmente se beneficia de estereótipos de gênero reducionistas, plenamente em vigor, tais como os da mãe egoísta e controladora e o da mulher ciumenta, mentirosa e vingativa. A fronteira entre, de um lado, a importante tarefa de identificar eventuais condutas alienadora e, de outro, o aprofundamento de formas de violência de gênero pode ficar diluída ou borrada.


As perspectivas feministas sobre o Direito ressaltam ainda que, em muitos casos, a rejeição quanto ao genitor encontra sua razão de ser em práticas de paternidade disfuncionais, marcadas por práticas negligentes, abandono e outras formas de violência contra os (as) filhos (as). É o que se chama de autoalienação parental. Da mesma forma, considerável parcela de juristas feministas alega que também as denúncias em casos de violência doméstica poderiam ser instrumentalizadas pelos agressores para fundamentar as acusações de alienação parental.


No entanto, o dispositivo que está no cerne da controvérsia feminista sobre a lei é o que define como ato de alienação parental a apresentação de “falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente” (art. 2º, inciso VI, da LAP). Nos últimos anos, ganhou visibilidade a movimentação de mães que afirmam terem perdido a guarda de seus filhos após a denúncia da suspeita contra os genitores, seus ex-maridos ou ex-companheiros. Casos dramáticos foram veiculados por importante canal da imprensa.


O debate está aceso e tem colocado em campos opostos atores importantes. De um lado, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) reivindica a alteração e manutenção da Lei da Alienação Parental. De outro, o Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CONANDA) e o Núcleo Especializado de Defesa e Enfrentamento à violência contra as mulheres (NUDEM), da Defensoria Pública de São Paulo, posicionam-se pela revogação da lei.



O que pensamos?

De nossa perspectiva, a LAP não traz um desafio especialmente novo para quem pretende instrumentalizar a forma jurídica ciente das limitações que lhe são inerentes. Estereótipos de mulheridade operam permanentemente no sentido de nos confinar e desumanizar. Eles compõem a narrativa e justificam sentenças em diversas demandas judiciais, tanto na esfera cível quanto na criminal. Quando se pretende operar o Direito de forma crítica, é preciso estar ciente de suas limitações: o sistema de justiça cria e sustenta estereótipos de gênero e padrões de maternidade para inquirir e estigmatizar mulheres – sobretudo as racializadas, trabalhadoras, lésbicas.


O poder judiciário pactua e sustenta os processos de desumanização, históricos e cotidianos, calcados no gênero, na raça e na classe. Mobilizar suas categorias em defesa daqueles(as) cuja vida é marcada por menos (ou nenhum) valor representa, sempre, o esforço de produzir furos ou brechas, em cada caso concreto, nesta lógica desumanizadora. A prática jurídica feminista que encare seriamente a cumplicidade entre o Direito e o patriarcado produtor de mercadorias deve reconhecer que a potência da disputa judicial não reside na modificação da estrutura das relações sociais vigentes.


Deste modo, eventual reforma ou revogação da Lei da Alienação Parental não teria o efeito de desarticular a métrica dos estereótipos de gênero e as violências operadas contra mulheres e crianças. Protocolos para julgamento com perspectiva de gênero, bem como campanhas profissionais pela criação, edição ou revogação de leis não são capazes de alterar a lógica de dominação operada pelo patriarcado produtor de mercadorias. Práticas profissionais, tanto quanto legislações e jurisprudência, não tem o efeito de modificar a forma das relações sociais.


Uma advocacia atenta e crítica a este mecanismo deve, por óbvio, evitar a vala comum dos argumentos centrados em estereótipos simplistas para a defesa dos interesses das partes. No entanto, a potência da disputa jurídica reside, sobretudo, na possibilidade de produção de deslocamentos na posição singular de cada sujeito(a). Dar nome e contorno a situações de abuso e constrangimento no interior das famílias – como no caso dos atos de alienação parental – pode ser fundamental para o reposicionamento dos sujeitos(as) e suas histórias de vida, sendo esta a contribuição transformadora que o direito pode dar. É esta nossa aposta.

25 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page