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  • Foto do escritorCarolina Gomes Domingues

Guarda compartilhada obrigatória e racismo no Direito das Famílias

Atualizado: 19 de nov. de 2021

Desde 2014, com as alterações no Código Civil promovidas pela lei nº 13.058, a regra para a definição judicial da custódia dos filhos passou a ser a da guarda compartilhada, inclusive nos casos em que inexista consenso entre os genitores. Este entendimento já é majoritário na jurisprudência, como indica a recomendação do CNJ sobre a matéria. Afirma-se que sobretudo nos contextos familiares marcados pela fragilidade ou inexistência de diálogo entre os genitores, a atribuição compartilhada da guarda seria capaz de assegurar o direito dos filhos(as) ao pleno convívio familiar e, assim, servir de antídoto eficaz contra os atos de alienação parental.

A discussão sobre a Lei da Alienação parental é causa de enorme controvérsia. No entanto, é comum que tanto seus defensores quanto seus opositores - apesar do contraste entre as duas posições -, reconheçam a Lei da Guarda Compartilhada obrigatória como um avanço rumo a igualdade entre os gêneros. Isto porque ela incentivaria a participação equitativa dos genitores na vida e educação de seus filhos(as) e, em relacionamentos heterossexuais, contribuiria para uma divisão mais igualitária do trabalho reprodutivo entre homens e mulheres.


À partir de uma perspectiva crítica, porém, cabe assinalar um aspecto central: leis e jurisprudência, por si, não são capazes de alterar as dinâmicas de masculinidade e, tampouco, das relações familiares. Em outras palavras: leis e ordens judiciais não são capazes de obrigar homens ao exercício efetivo de um modelo de paternidade responsável. O componente normativo que pretende convocá-los e responsabilizá-los não atua sobre seus arranjos subjetivos, organizados a partir da estrutura das relações sociais patriarcais. Leis não criam ou moldam comportamentos, e não funcionam como garantia ou proteção quando as relações afetivo-amorosas atravessam a concretude das escolhas pela negligência e/ou abandono dos filhos(as).


Deste modo, mais do que incentivar homens a serem pais amorosos e atentos, a atribuição obrigatória da guarda compartilhada termina reconhecendo e assegurando direitos a genitores ausentes e desinteressados do exercício efetivo de sua paternidade. Há casos, inclusive, em que o genitor exerce seus direitos de co-guardião de modo a acentuar contextos mais ou menos sutis de violência contra a mulher. A gama de exemplos é variada, mas podemos aqui apontar as tentativas de controle sobre a rotina, horários e vida social de ex-companheiras por meio da justificativa de acompanhar a vida dos filhos.


A Lei da Guarda Compartilhada obrigatória opera a partir dos estereótipos da família nuclear burguesa, formada por pai, mãe e filhos(as). Opera, portanto, a partir de estereótipos de branquitude para o exercício da parentalidade. Desconsidera as condições reais que marcam os diversos arranjos familiares, sobretudo aqueles em que as mulheres são as únicas responsáveis pelo sustento de seus filhos e filhas. Ao estabelecer, de forma obrigatória, a equiparação de direitos e poderes sobre os filhos(as), a lei ignora a multiplicidade das realidades concretas e das variadas cenas que alavancam os conflitos familiares.


Neste sentido, a referida lei dá ensejo a análises segundo as quais o que está em curso seria “a despatriarcalização do direito de família” e o desaparecimento do “modelo patriarcal nas relações sociais brasileiras, após a urbanização e a emancipação feminina, na segunda metade deste século” – frases que se repetem em manuais de Direito de Família. A igualdade na chefia familiar foi inclusive alçada a princípio norteador do Direito das Famílias, conforme o exemplo abaixo, extraído do Manual de Direito de Família do civilista Flávio Tartuce:


"Princípio da igualdade na chefia familiar: pode-se utilizar a expressão despatriarcalização do Direito de Família, eis que a figura paterna não exerce o poder de dominação do passado. O regime é de companheirismo e de cooperação, não de hierarquia, desaparecendo a ditatorial figura do pai de família (pater familias), não podendo sequer se utilizar a expressão pátrio poder, substituída por poder familiar”.


Ocorre que esta perspectiva, que aponta para o surgimento de um “regime de companheirismo e cooperação, não de hierarquia”, anuncia a experiência da branquitude como universal e, portanto, sustenta-se em violentas hierarquias raciais. Isto porque a “emancipação feminina” da segunda metade do século XX refere-se à experiência de mulheres brancas, e às conquistas do feminismo liberal. Em países da periferia do capitalismo, a relativa igualdade de direitos e de colocações no mercado de trabalho por elas alcançada se fez sobre os ombros de mulheres trabalhadoras, sobretudo negras.


No Brasil, o quadro é de sobrecarga e vulnerabilização das vidas destas mulheres trabalhadoras e periféricas, que ocuparam os postos de trabalho doméstico, precarizados, para que fosse possível a inserção das brancas no mercado de trabalho formal. Para aquelas mulheres, o trabalho assalariado sempre concorreu com o trabalho reprodutivo e com as tarefas de cuidado. A elas, historicamente, coube o papel de chefia familiar, sem que isto configurasse qualquer ameaça ou fragilidade ao patriarcado. Pelo contrário: o patriarcado configura este arranjo que fragiliza e ameaça suas vidas. Como descreve a socióloga Scheilla Nunes Gonçalves em seu livro Mulheres dos escombros: a condição de mulheres periféricas em tempos de catástrofe:


“Nas últimas décadas tornou-se comum no Brasil nomear as mulheres como chefes de famílias. São incontáveis esforços para sustentar famílias que crescem e sobrevivem a despeito de referências masculinas violentas, de vínculos instáveis ou completamente desaparecidos. É enorme a sobrecarga que atua sobre a subjetividade feminina para suportar a tarefa de equilibrar vidas entre ruínas”.


O crescente número de famílias chefiadas por mulheres não resulta de uma suposta conquista progressiva de igualdade entre os gêneros. Ao contrário, trata-se de aguda exploração e vilipêndio operados pelo patriarcado capitalista. Assim, não há qualquer fundamento para se afirmar a "emancipação feminina" - ainda que se considere feminilidade como sinônimo de branquitude. Não vivemos a “despatriarcalização" da sociedade e, muito menos, do direito de família. A inserção das mulheres no mercado de trabalho se dá de forma cada vez mais precarizada, e aponta para a luta de sobreviver equacionando uma vida de crise. Ainda de acordo com a mesma autora:


“O agravamento da crise evidencia que na senda dos processos de globalização não apenas não ocorreu uma superação do patriarcado produtor de mercadorias, como na verdade se deu o seu asselvajamento (...). Nas violentas rupturas sociais da crise mundial, as mulheres são responsabilizadas já não apenas pela esfera de reprodução, mas em igual medida pelo sustento da casa, embora ainda se mantenha a discriminação e a violência a que estão submetidas”.


É a descrição do que Sueli Carneiro chamou de matriarcado da miséria. Se consideramos as hierarquias raciais como eixo para a reflexão acerca das “conquistas emancipatórias” relativas à uma suposta igualdade de gênero no campo do direito das famílias, torna-se coerente o questionamento: a lei da guarda compartilhada obrigatória é uma conquista que corresponde aos anseios e à realidade de qual grupo de mulheres? Pode ela expressa certa sofisticação dos dispositivos patriarcais, quando os consideramos em sua articulação com o racismo?

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