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  • Foto do escritorCarolina Gomes Domingues

Depoimento especial: desafios para a escuta de crianças e adolescentes vítimas de violência

Atualizado: 31 de out. de 2022


A violência contra crianças e adolescentes no Brasil tem números alarmantes. Apesar da prioridade absoluta conferida à garantia de seus direitos pelo art. 227 da Constituição Federal, a violência os atinge em todas as formas: física, psicológica, sexual. É neste sentido que apontam, por exemplo, os dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 2019. São as meninas de até 13 anos de idade as principais vítimas dos crimes de estupro registrados no país, representando 53,8% dos casos.


De acordo com as conclusões elaboradas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, organização responsável pela publicação do anuário, o perfil do agressor, nestes casos, é o de uma pessoa muito próxima da vítima, muitas vezes seu familiar, como pai, avô e padrasto. Não é raro que este tipo de crime figure no interior de um contexto de violência doméstica mais amplo, no qual existem também outros tipos de violências físicas e psicológicas. Cenários como este são carregados de profundo sofrimento e causam desorganizações importantes na subjetividade das vítimas.


Obra de Jean-Michel Basquiat (1960 – 1988), publicada no livro "A vida não me assusta", que traz formas e cores à poesia de Maya Angelou (1928-2014), artista e escritora norte-americana. Após ter sido vítima de abuso sexual na infância, Maya Angelou ficou cinco anos sem falar.



As respostas oferecidas pelo Poder Judiciário, ao se limitarem à oferta de punição aos agressores, terminam por acentuar o sofrimento experimentado pelas vítimas. Isto porque as agressões sexuais, na maioria dos casos, acontecem no interior do ambiente doméstico, na privacidade dos quartos e casas, onde não há testemunhas. Além disto, muitas vezes as práticas libidinosas não deixam marcas aparentes ou lesões físicas. Desta forma, não é raro que a produção de provas contra o agressor termine por depender fundamentalmente do relato feito pela vítima, face à inexistência de prova testemunhal ou pericial.


Os mecanismos de investigação e produção de provas, orientados fundamentalmente para a punição dos acusados, expõe as crianças e adolescentes a uma série de violências institucionais. Uma pesquisa realizada pela Childhood Brasil, organização da sociedade civil que faz parte da World Childhood Foundation, apontou que crianças e adolescentes vítimas de violência chegavam a ser ouvidos de 8 a 10 vezes no curso de uma investigação criminal - entre o primeiro relato da violência e o fim do processo penal -, o que caracteriza um quadro gravíssimo de revitimização, no qual todo o ônus probatório está depositado sobre elas. Nos termos apresentados na pesquisa Depoimento sem medo (?): Culturas e Práticas não Revitimizantes,


“Uma vez que assumem a responsabilidade como testemunha central em um processo judicial, crianças e adolescentes experimentam rotineiras sensações de desconforto e estresse psicológico, sentimentos de medo e vergonha reiterada­mente provocados pelo formalismo e frieza das práticas judiciais. Esses elementos compõem a base da dificuldade que esses sujeitos têm ao prestar e sustentar seus depoimentos durante a fase de investigação.”


A técnica do depoimento especial certamente emergiu, na primeira década dos anos 2000, como resposta à dificuldade de produção de provas em situações de violência intrafamiliar. De acordo com o indicado na publicação Cartografia Nacional das Experiências Alternativas de Tomada de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes:


“Diversos fatores corroboram o reconhecido aumento do interesse do sistema de justiça sobre crianças e adolescentes vítimas e/ou testemunhas de violência intrafamiliar. A literatura referencia que o excessivo formalismo das práticas judiciais e a falta de capacitação dos profissionais e operadores do sistema de justiça tradicional contribuem para que crianças e adolescentes sejam, reiteradas vezes, tratados como testemunhas adultas, sendo revitimizados quando prestam depoimento em processos judiciais. Nesses casos, os efeitos traumáticos incidem diretamente na ausência de credibilidade e na não validação do testemunho como prova no processo”.


No Brasil, a implementação de práticas alternativas para oitiva de crianças e adolescentes teve início junto à 2ª Vara de Infância e Juventude de Porto Alegre, em 2003. Anteriormente denominado “depoimento sem dano”, a prática do depoimento especial consiste na inserção de metodologias especializadas, como a participação de técnicos capacitados em entrevista cognitiva realizada em ambiente amigável com a criança e a videogravação da oitiva para a produção de prova testemunhal.


O interesse por estas práticas se espalhou por vários Tribunais de Justiça do país, visto que os profissionais envolvidos notaram melhoria na qualidade da prova obtida, com redução dos danos gerados às crianças e adolescentes. Foi neste contexto de expansão e consolidação de práticas alternativas para a escuta destes sujeitos que a Lei 13.431/2017 estabeleceu o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente vítimas ou testemunhas de violência, regulamentando a forma pela qual elas devem ser ouvidas. A referida lei procura reduzir a revitimização, limitando o número de ocasiões em que crianças e adolescentes relatam as violências de que foram vítimas e/ou testemunhas.


A lei nº 13.431/2017, que instituiu os procedimentos para a escuta especializada e o depoimento especial, está, assim, orientada pelo princípio constitucional da proteção integral de crianças e adolescentes, priorizando a preservação de sua integridade emocional face a necessidade de produção de prova e de responsabilização dos acusados.



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