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  • Foto do escritorCarolina Gomes Domingues

Criminalização da violência psicológica contra mulheres: a que(m) serve?

Atualizado: 17 de ago. de 2021


Certo ramo da criminologia crítica latino-americana já definiu bases sólidas para a compreensão do direito penal como um instrumento de supremacia da branquitude. Estes estudos, muitas vezes centrados na perspectiva da diáspora africana pelo Atlântico Negro, entendem a própria colônia como uma grande instituição de sequestro e aprisionamento de milhões de seres humanos. De acordo com esta perspectiva, a violência intrínseca ao processo de colonização compõe o lado “oculto” da Modernidade que evidencia, aos olhos interessados, os vínculos entre barbárie e progresso.


Colagem com a obra da artista plástica Rosana Paulino.

Nas Américas, o sistema penal é construído para funcionar como máquina de morticínio, que segue impondo processos de morte em vida para a população negra - ontem cativa, hoje encarcerada. Entre nós, a construção do sistema penal público atualiza para o contexto pós-abolição o horror da experiência de punição privada, exercida por séculos de açoite e tortura dentro dos latifúndios e, também, nos pelourinhos e calabouços dos principais centros urbanos.


São muitos os estudos que apontam com clareza analítica irrefutável que o genocídio operado pelo sistema penal não resulta de algum suposto desvio ou ineficiência do Estado brasileiro na garantia dos direitos do cidadão. O morticínio e o encarceramento de negros e negras é, antes, a base sobre a qual a própria noção de cidadania (ou de sujeito de direito) se constrói. Destes estudos, cito brevemente os de Ana Flauzina, Thula Pires, Dina Alves, Suzane Jardim, Vera Malaguti e Scheilla Nunes, para ficar apenas entre as brasileiras.


A despeito da força crescente destas narrativas que evidenciam a impossibilidade de se atribuir qualquer conteúdo emancipatório ao direito penal, é muito comum na prática jurídica dita feminista certa insistência e celebração em torno do fortalecimento do discurso punitivista. O exemplo mais recente é o da larga comemoração entre advogadas, juízas e promotoras da criminalização da violência psicológica contra mulheres, por meio da Lei 14.188/2021. Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no final do mês de julho, a referida lei incluiu no Código Penal o crime de violência psicológica contra a mulher, definindo pena de reclusão de seis meses a dois anos, e multa.


A redação do novo artigo 147-B do Código Penal é a seguinte:


"Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave".


Cabe ressaltar que a maior parte das vozes que comemoram a criminalização de comportamentos machistas traduz a posição de feministas identificadas com a branquitude. De minha perspectiva, porém, como mulher branca e advogada que assume compromisso com as práticas jurídicas antirracistas, torna-se fundamental o esforço de compreender e denunciar o circuito de violências criado e alimentado pelos processos de criminalização/racialização. Diante dos estreitos limites emancipatórios do Direito, é pertinente o esforço de distinguir as estratégias mais ou menos associadas à sustentação do patriarcado racista de supremacia branca.


Nesse sentido, ousaria afirmar que a criminalização da violência psicológica serve sobretudo para enredar, uma vez mais, as mulheres nos curtos-circuitos de verificação de suas narrativas. As exigências do devido processo penal constitucional relativas à comprovação da materialidade do crime – no caso, do dano emocional efetivamente experimentado - por meio de exame de corpo de delito e perícia técnica psicológica podem significar, na prática, desserviço para a legitimação das vozes que decidem narrar as formas desta violência sutil e cotidiana. São tortuosos e torturantes os procedimentos de produção de prova, tanto nas fases de investigação policial quanto judicial, e para a identificação de condutas tangíveis, passíveis de responsabilização criminal, o histórico de saúde mental da mulher será carne barata, exposta e revirada.


Assim, do mesmo modo como já ocorre nos casos de outros crimes em contexto de violência doméstica e/ou de gênero, a criminalização específica da violência psicológica reforça a inserção e enredamento das mulheres nos descaminhos do processo penal sem, com isso, resultar em efetiva aplicação de pena para seus agressores. Ainda que do ponto de vista da branquitude a expansão dos tentáculos do Estado penal seja considerada uma alternativa razoável e imediata para o combate à violência machista, na prática cotidiana dos tribunais a condenação não se apresenta, nestes casos, como resposta predominante.


Com este raciocínio não se quer apontar eventuais gargalos criados pelas garantias processuais penais, ou descartá-las. O que se quer é evidenciar a incompatibilidade entre os mecanismos do direito penal e os desafios do enfrentamento à violência contra as mulheres. O funcionamento da lei – ou seja, sua aplicação pelos Tribunais – traz um arsenal sempre renovado de dificuldades para a desconstituição da posição subalterna das mulheres, que varia sempre em função da pertença racial e de classe de cada uma.


Quais mulheres conseguem, de fato, mobilizar a justiça criminal para a construção de sua autonomia e liberdade, e quais são fagocitadas pelo emaranhado de leis e procedimentos? Quem, diante da evidência da tortura operada pelo sistema de justiça criminal, segue a celebrá-lo sob a bandeira do feminismo? A expansão do sistema penal nunca significou proteção para as mulheres negras, periféricas, trabalhadoras, espoliadas. Pelo contrário, significa o aprofundamento das cenas de tortura e humilhação experimentada por elas nas delegacias, filas de presídios, corredores e salas de audiência.


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1 Comment


Caio Blanco
Caio Blanco
Sep 21, 2021

Artigo de debate extremamente importante. Lúcido, traz a reflexão necessário sobre nosso sistema penal, carcerário e sobre a racialização dos procedimentos jurídicos. Obrigado por compartilhar.

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