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  • Foto do escritorCarolina Gomes Domingues

Crimes sexuais contra mulheres e o "paradoxal privilégio de ser vítima"

Atualizado: 19 de ago. de 2021


Os casos de violência sexual contra mulheres são, infelizmente, histórias rotineiras. De acordo com os dados divulgados em 2019 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os registros de violência sexual vem crescendo anualmente e atingiram, em 2018, a média de 180 crimes deste tipo por dia. Em 81,8% deles, as vítimas eram mulheres. Entre elas, 53,8% tinham até 13 anos de idade.


A antropóloga Rita Laura Segato, em seu texto Gênero e colonialidade, publicado em 2012, examina a inter-relação entre colonialidade e patriarcado, e afirma que testemunhamos hoje “um momento de tenebrosas e cruéis inovações na forma de vitimar os corpos femininos e feminizados, uma crueldade que se difunde e se expande sem contenção”. Em suas palavras, a “rapinagem sobre o feminino” e a “ocupação depredadora dos corpos femininos ou feminizados se pratica como nunca até aqui e, nesta etapa apocalíptica da humanidade, espolia até deixar somente restos”.


O estupro de mulheres é característica central da história de colonização das Américas, de norte a sul. Esteve e está intimamente associado aos quase quatrocentos anos de escravização de homens e mulheres sequestrados de África, entre os séculos XVI e XIX. Uma vez arrancadas de seus lugares e vínculos de pertencimento, experiência característica da travessia Atlântica a bordo dos Navios Negreiros, as mulheres negras escravizadas passaram a ser objeto de estupro sistemático praticado por seus senhores, proprietários de seus corpos. Como afirma Lélia Gonzalez,


“a condição feminina não suavizou o trabalho destas mulheres, que trabalharam em duas funções: trabalhadora do eito e mucama. A primeira seria definida como escrava produtiva e a outra como responsável pela manutenção da ‘casa grande’, com a dimensão da exploração sexual”.


Obra da artista plástica Rosana Paulino, que compõe sua série "A costura da memória". Nesta obra, lemos a referência ao trauma da travessia atlântica e ao processo de racialização, estratégia de poder que define quem deve viver e quem pode morrer.



Os casos e estatísticas atuais de estupro formam parte desta história duradoura e jamais interrompida de violações, que exprime os traços cruéis assumidos pelo patriarcado-racista em terras Amefricanas. No entanto, a violência sexual sistemática praticada contra as mulheres negras é encoberta, no Brasil, pelo mito da democracia racial – que, de acordo com Gonzalez, dá sustentação a um ruidoso silêncio sobre as contradições raciais existentes no país.


Historicamente, no campo do Direito Penal, o reconhecimento da vitimização de mulheres por crimes sexuais criou distinções entre categorias jurídicas como “mulher virgem”, “mulher pública”, “mulher honesta” – supostamente neutras do ponto de vista racial. Vigentes desde as Ordenações Filipinas até a reforma introduzida pela Lei 11.106/2005, com poucas alterações nos Códigos Penais de 1830, 1890 e 1940, estas categorias distinguiam as penas cominadas em função do perfil das vítimas. De acordo com esta sistemática, a mulher só poderia ser considerada como sujeito passivo de determinados crimes sexuais quando fosse considerada honesta, virgem, ou reputada como tal.


O mecanismo que opera para classificar as vítimas é regido pela métrica de sua maior ou menor adequação às expectativas socialmente atribuídas ao gênero feminino - que, nos discursos hegemônicos como o jurídico, é também atravessado pelo marcador social da branquitude.


Os quase quatrocentos anos de escravatura fizeram do Brasil um país estruturado pela dominação racial, onde os sujeitos são hierarquizados em virtude de sua cor de pele. No entanto, apesar do abismo que separa as experiências de vida e condições de trabalho de mulheres brancas e negras, o racismo não é reconhecido como fator determinante desta estratificação: é o que Lélia Gonzalez identificou como “racismo por denegação”. Ou seja, a discriminação racial vigora plenamente, mas não é nomeada como tal.


Como resultado desta dinâmica racista, a vitimização de mulheres é percebida pelo sistema de justiça criminal de formas distintas, a depender da pertença racial em questão. O racismo brasileiro criou estereótipos de gênero distintos para mulheres brancas e mulheres negras, mas manteve encoberto o fundamento racial das distinções. Assim é possível invisibilizar a correlação entre, de um lado, as categorias “virgem” ou “honesta” e o estereótipo atribuído às mulheres brancas e, de outro lado, entre “mulher pública” ou “prostituta” e a mulheridade negra. Na esteira do pensamento de Lélia, seria possível ainda encontrar correlações entre “mulher pública” e “mucama”, “prostituta” e “mulata”.


O estereótipo atribuído à mulheridade branca é o condensado na expressão “bela, recatada e do lar”. As mulheres brancas são percebidas como frágeis, dependentes, inativas e são mais diretamente associadas ao confinamento do espaço doméstico. O que se espera delas é a fidelidade absoluta ao casamento, a inapetência sexual, a discrição e o silêncio. Em casos de crimes sexuais, as mulheres identificadas com este modelo são mais facilmente reconhecidas como vítimas pelo sistema de justiça. As mulheres brancas que encarnam a performance de gênero prescrita pelo patriarcado-racista são as usualmente selecionadas como merecedoras de proteção jurídica.


As mulheres não-brancas não se encaixam neste estereótipo. A história social de mulheres negras, por exemplo, em geral excluídas da proteção-submissão inerente ao contrato de casamento, criou para elas outra realidade. A lógica escravocrata, que as submeteu a rotinas de trabalho extenuantes, bem como ao estupro sistemático, criou a imagem da negra ‘forte’, ‘bruta’, que tudo suporta. Desde a diáspora pelo Atlântico, a exploração de sua força de trabalho e de seus corpos gerou para elas outro padrão de mulheridade e outro estereótipo de gênero, notadamente marcado por sua animalização e hipersexualização.


Diante destes estereótipos racistas, que lhes negam humanidade, as violências praticadas contra elas são mais facilmente naturalizadas e, assim, deixam de ser percebidas como violência. A jurista Thula Pires, em seu texto, “Racializando o debate sobre Direitos Humanos”, mobiliza os conceitos de ‘zona do ser’ e ‘zona do não ser’, elaborados por Frantz Fanon, para afirmar que


“O projeto moderno/colonial mobilizou a categoria raça para instituir uma linha que separa de forma incomensurável duas zonas: a do humano (zona do ser) e a do não humano (zona do não ser). Sendo o padrão de humanidade determinado pelo sujeito soberano (homem, branco, cis/hétero, cristão, proprietário e sem deficiência), também ele definirá o sujeito de direito a partir do qual se construirá toda narrativa jurídica”.


Na narrativa jurídica, as mulheres negras dificilmente se encaixam no estereótipo da ‘vítima’, da mulher frágil a ser protegida. O vilipêndio de seus corpos é naturalizado pelo racismo que as objetifica. Apesar de não declarado abertamente, o racismo é central para a sustentação desta lógica que identifica quais mulheres podem ter seu sofrimento reconhecido, tornando-se merecedoras de proteção jurídica, e quais podem ser descartadas. Assim, o mito da democracia racial exerce sua violência de maneira especial sobre a mulher negra.


A branquitude confere privilégios simbólicos e materiais, criando um lugar de permanente vantagem estrutural para os homens e mulheres brancos. A supremacia racial branca invisibiliza e silencia as experiências de vida dos sujeitos não-brancos, descartando-as. Neste contexto, o padrão hegemônico de feminilidade a ser protegido é aquele associado à branquitude. Proteção (de umas) e descarte (de outras): esta é a relação produzida pela dinâmica de racialização e seu par indissociável: diferença-inferioridade. É por sobre o descarte dos corpos das mulheres negras que o Brasil se faz e se refaz.

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