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  • Foto do escritorCarolina Gomes Domingues

"A pretensa proteção das crianças e adolescentes existente na lei federal nº 12.318/2010"

Atualizado: 3 de nov. de 2021

Texto reproduzido da Nota Técnica sobre Alienação Parental elaborada pelo Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo – NUDEM, que pode ser acessado na íntegra aqui.



(...) A utilização da justificativa do Projeto de Lei tende a ser útil para intepretação teleológica da lei e análise dos motivos/objetivos a serem alcançados com a elaboração do diploma normativo. A Lei da Alienação Parental lei foi promulgada, nas palavras do legislador, com o seguinte objetivo:


“A alienação parental é prática que pode se instalar no arranjo familiar, após a separação conjugal ou o divórcio, quando há filho do casal que esteja sendo manipulado por genitor para que, no extremo, sinta raiva ou ódio contra o outro genitor. É forma de abuso emocional, que pode causar à criança distúrbios psicológicos (por exemplo, depressão crônica, transtornos de identidade e de imagem, desespero, sentimento incontrolável de culpa, sentimento de isolamento, comportamento hostil, falta de organização, dupla personalidade) para o resto de sua vida. O problema ganhou maior dimensão na década de 80, com a escalada de conflitos decorrentes de separações conjugais, e ainda não recebeu adequada resposta legislativa”.


A análise da justificação do Projeto de Lei evidencia que o objetivo da Lei de Alienação Parental é a proteção da criança/adolescente para evitar que sofram abusos emocionais praticados por um dos genitores e para possibilitar a convivência familiar entre a criança/adolescente e o genitor não residente e seu núcleo familiar. Dessa forma, em princípio, todas as decisões judiciais tomadas com fundamento na Lei de Alienação Parental deveriam estar motivadas pelos princípios do melhor interesse da criança e adolescente e da proteção integral. (...).


Estabelecida a premissa acima, faz-se necessário destacar que embora se repercuta que a dita “alienação parental” é um problema que atinge muitas crianças e adolescentes, não há pesquisas científicas ou dados que atestem essa realidade. Assim, ainda que, diversas matérias veiculadas na imprensa escrita ou por meio de televisão, encare a chamada “alienação parental” como uma realidade que chega a atingir 80% de filhos/as de pais separados, não há evidencia de pesquisa sólida que ateste este dado. (...).


O fato é que o tema tem sido tratado com superficialidade no Brasil e a aprovação da lei ocorreu somente em razão dos dados apresentados pela APASE - Associação de Pais Separados- e após quase dez anos de promulgação da legislação não há comprovação/análise do número de crianças /adolescentes afetadas pela síndrome e nem da suposta melhoria destes índices, a partir da edição da lei, ou de qualquer outro benefício trazido por tal lei.


Nesse sentido, a primeira questão posta seria se a “Síndrome da Alienação Parental” é, de fato, um problema com a magnitude que tem sido colocada. Com isso, reforçando, não se pretende dizer que não existem conflitos familiares consequentes do fim da relação de conjugalidade e que podem ter reflexos nas relações parentais, apenas o que se questiona é se a estes conflitos seria correto denominar como “síndrome” e se as formas de intervenção previstas pela Lei de Alienação Parental são úteis para solucioná-los.


Outro aspecto relevante é que o art. 2º da Lei 12.318/2010 elenca como uma das hipóteses de alienação parental a apresentação de falsa denúncia contra genitor/a, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles/as com a criança ou adolescente.


Ocorre que, conforme divulgado no Boletim Epidemiológico 27, Volume 49, de junho de 2018/19, percebe-se que entre os períodos de 2011 a 2017 foram notificados 184.524 casos de violência sexual, sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%) contra adolescentes, concentrando 76,5% dos casos notificados nesses dois cursos de vida. Comparando-se os anos de 2011 e 2017, observa-se um aumento geral de 83,0% nas notificações de violências sexuais e um aumento de 64,6% e 83,2% nas notificações de violência sexual contra crianças. Para agravar a situação a análise do perfil das notificações de violência sexual contra crianças mostrou que 33,7% dos eventos tiveram caráter de repetição, 69,2% ocorreram na residência e 4,6% ocorreram na escola. Em relação aos adolescentes, percebe-se que 39,8% dos eventos relacionados à violência sexual tiveram caráter de repetição, 58,2% ocorreram na residência e 70,4% foram notificados como estupro. A análise dos dados revela, portanto, que a família pode ser um perigoso espaço de violação de direitos para crianças e adolescentes.


A Lei de Alienação Parental, ao caracterizar como ato de “alienação parental”, a apresentação de falsas denúncias pode contribuir para mascarar ainda mais essa realidade de abusos sexuais sofridos por crianças/ adolescentes, quando estes/as estiverem envolvidos/as em litígios judiciais.


O diploma legal que se analisa é contrário a doutrina da proteção integral e as convenções internacionais a criança/ adolescente, na medida em que as crianças/adolescentes deixam de ser considerados/as sujeitos de direito, uma vez que possuem seus depoimentos completamente desconsiderados/as e recebidos com muita desconfiança ou como se fossem apenas fruto de fantasia ou de uma programação/lavagem cerebral feita por outrem.


Dessa forma, crianças envolvidas em litígios judiciais, ao referirem a situações relacionadas a negligências, maus tratos e violência sexual, poderiam ter seus relatos tratados como fantasiosos ou como consequentes da implantação de falsas memórias. A judicialização da questão, isto é, a existência da situação de litigio conjugal, ao invés de proteger a criança, levaria a situação de descrédito de seu relato, que seria recepcionado como suposta ou possível situação de “alienação parental”.


Alertando para a possibilidade da SAP mascarar situações de violência sexual a que crianças são expostas, assim se manifesta Maria Clara Sottomayor:


“O primeiro mito sobre abuso sexual de crianças, que ainda persiste hoje é que o crime é raro. Pelo contrário, a realidade social demonstra que o abuso sexual de crianças não é um fenômeno excepcional ou patológico(...). O Segundo mito é que as mulheres e crianças quando dizem que são abusadas ou violadas estão a mentir ou a fantasiar, e que mesmo quando o abuso sexual se verifica, a culpa é da criança vítima e de sua mãe.”


O trabalho de Gardner faz incidir a investigação judicial numa presunção de que a criança mente, deixando de lado a da questão de saber se o/a progenitor/a atingido se comportou de uma forma que possa explicar a aversão da criança.


Na prática, a SAP tem contribuído fortemente para escamotear o fenômeno do abuso sexual de crianças, na medida em que funciona como um conselho aos/as juízes/as de que não devem levar a sério alegações de abuso sexual, em processos de guarda de crianças.

(...)

Não se pode deixar de destacar, ainda, que em grande parte dos casos os abusos sexuais sequer são notificados e quando há notificação, o delito pode não deixar vestígios. Dessa feita, a inexistência de condenação criminal, não significa a inocorrência do abuso e por consequência uma suposta prática de “alienação parental”. Em relação a isso Rubia Cruz destaca o seguinte:

“Enquanto os Tribunais exigem das vítimas materialidade de provas para garantir a certeza sobre a denúncia, o mesmo não ocorre na acusação de alienação parental, promovendo uma desigualdade... A lei de alienação parental transforma a denúncia em um calvário para a vítima, invertendo o papel do algoz. A falta de neutralidade da norma gera efeitos discriminatórios diretos e indiretos contra as mulheres, reproduzindo estereótipos de gênero em prejuízo das mulheres, onde qualquer mulher é vista como alienadora perante o juízo – juízo este que deveria proteger a mulher e as crianças, pois são os sujeitos em maior vulnerabilidade social.


Especificamente, no que concerne aos depoimentos de violência sexual, ao se receber os relatos de vítimas, sobretudo crianças/ adolescentes, com desconfiança, cria-se um ambiente favorável à revitimização. Desse modo, é essencial que os relatos das vítimas e de seus representantes legais, em se tratando de crianças e adolescentes, sejam recebidos com presunção de boa- fé.

Sob este aspecto a Lei de Alienação Parental pode não representar uma proteção eficiente para crianças/adolescentes. Isso porque ao enumerar os sintomas da Síndrome de Alienação Parental, Gardner identificou sintomas semelhantes aos casos em que a rejeição do genitor, em virtude de agressões/ negligências/ maus tatos é justificada. Nestes casos, então Gardner entende que a rejeição ao genitor é justificada e, portanto, não se empregaria o conceito de SAP. O que se verifica é que não há uma investigação profunda se a rejeição a um dos genitores decorre de um comportamento anterior que justifique, justamente porque os sintomas da SAP são semelhantes as atitudes de rejeição justificada como decorrência de maus tratos, confundindo completamente, e talvez propositadamente, ambos sintomas.


Em interessante observação Maria Clara Sottomayor destaca que o modo como a questão é posta “propõe um apagamento da criança, no plano simbólico, na medida em que prioriza o conflito existente entre adultos e uma visão subjetiva deste conflito, associando-o a um sentimento de capricho ou vingança e descurando-se do fato de que o que pode estar em jogo é uma tentativa de uma mãe preservar a incolumidade física de seu filho”.


Outro ponto de fundamental relevância e que não se pode ignorar é que a existência de acusação de “alienação parental” tem sido usada por genitores, em processos nos quais são acusados de violência doméstica contra companheiras/ consortes, como matéria de defesa. Nestes casos, é comum que se considere, sobretudo em juízos de família, que se as agressões físicas não são dirigidas às crianças, a rejeição das crianças aos genitores agressores seria injustificada, desconsiderando-se os agravos psicológicos ou danos emocionais a que a criança pode estar submetida ao ter vivenciado situações de violência contra uma figura de afeto, proteção e amor extremamente relevante para a maioria das crianças, ou seja, não é agressão a “uma pessoa qualquer”, fato que causa impacto ainda maior em sua subjetividade.

(...)



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